artigos |Postado em 20-08-2020

Testes em animais e o que eles sentem

Conheça mais sobre os testes em animais e os avanços a nível internacional para um mundo mais livre de crueldade.

Hoje o assunto é um pouco mais delicado, mas muito necessário de ser discutido.

Vamos começar esclarecendo um ponto importante. Você lerá aqui a terminologia “animais não humanos” fazendo referência a todos os animais, com exceção da nossa espécie, Homo sapiens. Para alguns, isso pode soar incômodo e para outros não. Mas a intenção é adequar o olhar de vocês para o fato, muitas vezes ignorado, de que os seres humanos também pertencem ao Reino Animal (Animalia / Metazoa).

A proposta aqui é, simplesmente, não dar continuidade a alguns termos e paradigmas que podem tentar reduzir a importância da vida dos outros animais perante a vida humana e, por conseguinte, a relevância da discussão. Agora vamos lá... 

Os animais não humanos e a senciência

Os animais não humanos, antes vistos como objetos, são reconhecidos como sujeitos de direito pelo ordenamento jurídico de diversos países. No Brasil, esse avanço ainda não se concretizou, pois ainda aguardamos que o PL 27/2018 seja sancionado como lei, reconhecendo a natureza biológica e emocional dos animais não humanos. Esse reconhecimento não significa considerá-los pessoas humanas, ou estender a eles os mesmos direitos legais dos humanos, mas, objetivamente, encará-los como sujeitos de personalidade jurídica autônoma, com direitos à vida, à integridade física e à saúde[1].

A visão de que os animais não humanos merecem ser sujeitos de direitos foi possível a partir do consenso científico que atribui a muitos deles o que chamamos de senciência. Para haver possibilidade de ser prejudicado ou beneficiado, é necessário ser senciente, ou seja, possuir perspectiva de primeira pessoa, perceber o mundo, possuir estados mentais com valência positiva e negativa, ser alguém e não algo. Os animais sencientes possuem a capacidade de sentir, de sofrer ou de desfrutar dor e prazer, independentemente de sua configuração biológica, da capa­cidade de percepção sobre si mesmos ou de qualquer aferição sobre sua inteligência[1].

Sendo assim, reconhece-se que alguns animais não humanos possuem capacidade de sentir e interagir com outros seres conscientemente, sendo possuidores de valores inerentes, retirando-lhes o atributo de coisa. A partir da Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, mamíferos, aves e alguns invertebrados (como os moluscos) são reconhecidos como seres capazes de estados afetivos[1]. A comprovação da senciência de outros animais pôde confrontar totalmente os paradigmas estabelecidos até então, que davam apenas aos humanos tal consideração.

Mas, apesar de haver respaldo filosófico, jurídico e biológico para reconhecermos os outros animais como seres tão passíveis de consideração moral e dignidade quanto nós, na prática, a maioria deles ainda é excluído de um olhar igualmente compassivo.

Os animais não humanos vêm sendo expostos à experimentação desde 300 anos antes da Era Cristã. Há pelo menos 1900 anos, os animais não humanos já eram dissecados em pesquisas de anatomia, fisiologia, patologia e farmacologia. A ascensão da ciência moderna contribuiu com esse cenário, mas também influenciou no crescimento de argumentos contrários ao sofrimento causado a esses animais.

Testes em animais

Os testes em animais são praticados para diferentes fins, incluindo os estudos toxicológicos desenhados para predizer a segurança de produtos que possam entrar em contato com pele, mucosas, sangue e demais tecidos do ser humano. A avaliação da toxicidade de uma substância é feita para conhecermos os efeitos nocivos que ela poderá desencadear quando em contato com humanos, por diferentes vias de exposição (oral, dérmica, inalatória, dentre outras), ou para rastrear como se dará a absorção, biotransformação, metabolismo, armazenamento e excreção de tal substância através dos órgãos.

Para cumprir este propósito, o uso de animais – principalmente mamíferos – sempre foi bastante difundido em testes toxicológicos e, inevitavelmente, requerido nos processos investigativos, desde o desenvolvimento de produtos até seu registro e comercialização. No entanto, tais estudos mostraram que nem sempre foram justificáveis, reprodutíveis entre espécies, ou sequer demonstraram ser garantias insubstituíveis.

Algumas de nossas características anatômicas são semelhantes, porém a funcionalidade dos órgãos, a capacidade de adquirir doenças e o metabolismo das substâncias na maior parte das vezes não é igual entre animais humanos e não humanos, tornando os testes não reprodutíveis em muitos casos[2].

É como se alguns animais fossem iguais o suficiente para servirem de modelo para fenômenos humanos, mas não fossem iguais o suficiente para receberem a mesma consideração.

Determinadas espécies recebem status ainda mais inferiores que outras. Mais de 93% dos animais procriados em laboratórios e utilizados em pesquisa, como ratos (gênero Rattus), camundongos (gênero Mus), peixes e pássaros, não são cobertos pela Lei do Bem-Estar Animal dos Estados Unidos até o presente momento, por exemplo[3]. Há 16 anos, um trabalho intenso está sendo feito pela Sociedade Americana Anti-Vivissecção para corrigirem isso, porque quando a lei diz que alguns animais não são como os outros a burocracia com a experimentação é facilitada.

Dentre os que mais sofrem nos laboratórios de testes estão camundongos, coelhos, peixes, ratos, pássaros e porquinhos-da-índia.

Um teste toxicológico com animais bastante conhecido é o teste de Dose Letal (DL50), proposto por J. Trevan, em 1927. Resumidamente, o teste DL50 serve para avaliar se uma substância pode ou não causar morte em 50% dos animais de um grupo experimental após ser ingerida por eles. Esse teste causa sofrimento e morte para mais de 100 ratos e camundongos para cada substância analisada.

Outro famigerado teste é o teste Draize, desenvolvido em 1944, que foi o padrão internacional para avaliar irritação aguda e corrosão dos olhos, expondo milhares de coelhos a sucessivas lesões oculares que resultam em opacidade da córnea, lesão da íris, vermelhidão e edema da conjuntiva.

O teste Draize também era utilizado para avaliação de produtos irritantes e corrosivos para a pele. O teste Draize em pele de coelho albino era o único método aceito mundialmente para esse fim entre os anos de 1981 e 2009. A pele desses coelhos apresentava vermelhidão, inchaço, nebulosidade, edema, hemorragia e corrimento decorrentes do processo inflamatório.

Esses animais sentem muito incômodo e muita dor, pois não podem ser sedados, e passam por todos estes processos acordados. Entre outros fatores, algumas espécies acabam sendo escolhidas para testes de acordo com o tamanho, a anatomia, a docilidade, a fácil manutenção e pelo tempo reduzido para obtenção dos filhotes. São escolhidos por serem animais frágeis e sensíveis. Irônico, não?!

Anualmente, aproximadamente 100 milhões de animais são utilizados em experimentos no mundo todo. Segundo uma estimativa da União Europeia, no top 10 dos países que mais utilizaram animais em pesquisas no ano de 2015, o Brasil ocupou o sétimo lugar, tendo realizado 2.179.621 procedimentos laboratoriais envolvendo animais[4].

Para avaliar a segurança de fármacos, as implicações do uso de animais são muito mais complexas e não pretendo abordar aqui hoje. No entanto, para avaliação toxicológica de cosméticos, produtos de higiene e correlatos, os testes em animais são desnecessários. Os testes que substituem os animais por métodos alternativos já existem e são cientificamente validados. 

A realidade no Brasil

Não há uma lei federal que proíba os laboratórios de testarem seus produtos ou ingredientes desta forma, ou mesmo de comercializarem produtos testados em animais no Brasil. Apenas 8 Estados possuem leis que proíbem a utilização de animais para desenvolvimento, experimentos e testes de produtos cosméticos, de higiene pessoal, perfumes e seus componentes em seus territórios: Amazonas, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

A realidade a nível mundial

Em 2017, foi possível observar uma queda no número de animais vertebrados utilizados e/ou número de procedimentos que incluíram seu uso em pesquisas científicas em diferentes países da Europa, América e Ásia, quando comparado com os anos anteriores. Hoje, União Europeia, Austrália, Turquia, Índia, Suíça, Guatemala e a Colômbia são territórios onde a utilização de animais em experimentos é proibida. Em 3 Estados dos EUA também há essa proibição. Na China, os testes em animais não são mais obrigatórios. Mas isso não significa que os experimentos pararam de acontecer.

O que podemos fazer?

A eminente redução no uso de animais, principalmente em testes para avaliar químicos, é consequência da pressão dos consumidores, da evolução das regulamentações internacionais que orientam as pesquisas e dos avanços tecnológicos para o desenvolvimento de alternativas, gerando mais inovação e investimentos no setor. Por isso, é muito importante que a população se posicione, mostrando que não aceita mais tanta crueldade.

É justo financiar a morte de seres sencientes para usar rímel, batom, shampoo e afins?

Você pode escolher cosméticos não testados e/ou com ingredientes testados em animais e apoiar empresas cruelty-free. Nós trazemos mais informações no artigo Rótulos: entenda o que há por trás dos seus produtos.

Ajude a acabar com testes de cosméticos em animais no Brasil assinando a petição em www.libertesedacrueldade.org, compartilhando em suas redes sociais e apoiando a campanha #LiberteseDaCrueldade.

 

Até a próxima!

Lorena Neves


Referências:

[1] GARRIDO, R. G.; NEVES, L. de O.; DAL-CHERI, B. K. de A. Regulamentação e Perspectivas Metodológicas Sobre Testes em Animais no Brasil. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, v. 10, n. 21, p. 161–193, 2018.

[2] HARTUNG T. Toxicology for the Twenty-First Century. Nature, v. 460(9), 2009.

[3] LEARY, S. A. The Exclusion of Mice, Rats, and Birds. AV MAGAZINE, 2017.

[4] TAYLOR K.; ALVAREZ, L. R. An Estimate of the Number of Animals Used for Scientific Purposes Worldwide in 2015. Alternatives to Laboratory Animals, v. 47(5-6) 196–213, 2019.